Dislexia em foco

Para a ONU, deficiente é qualquer pessoa considerada vulnerável por enfrentar dificuldades para exercer seus direitos, independentemente de suas limitações serem de ordem física, mental, sensorial, múltipla ou etária. Mede-se a deficiência pelo grau de sua impossibilidade de interagir com o meio da forma mais autônoma possível.  

A criança disléxica ou com qualquer outra forma de distúrbio de aprendizagem não identificado e tratado logo no início de sua vida escolar se enquadra nesse conceito, pois a escola a acolhe apenas de maneira aparente, não lhe servindo de verdadeiro local de aprendizagem. O resultado dessa omissão será um ser humano cada vez mais deficiente, à medida que será considerado, do ponto de vista formal, como educado, quando na verdade, será alguém preso à sua condição limitadora, condenado a se tornar um adulto estigmatizado, vítima daquele discurso de ódio que atribui o eventual fracasso educacional de uma pessoa à sua preguiça ou falta de caráter.

Para corrigir essa distorção e garantir o direito à educação e a uma vida plena a essas crianças do nosso Estado, propusemos o Projeto de Lei nº 242/2016, que institui a PROAP: Política de Promoção da Aprendizagem nas redes estaduais de saúde e educação, por meio de identificação, diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos alunos com distúrbios de aprendizagem e déficits visuais e auditivos como a dislexia, a síndrome de Irlen, a de Darvs, a disgrafia, a discalculia, a disortografia, o transtorno do déficit de atenção e a hiperatividade, dentre outros.

Esse projeto foi aprovado pela Assembleia Legislativa, mas voltou com a mensagem de Veto nº 33/17, com a alegação de inconstitucionalidade por invadir matéria de iniciativa privativa e gerar aumento de despesa. Todavia, trata-se de outra falácia do Governo, pois, mesmo com a criação de uma política pública e de novos serviços, o projeto é constitucional. Vejamos.

Desde que foi ratificada pelo Brasil, a “Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência” passou a fazer parte da Constituição Federal. Assim, quando se lê nessa convenção que “os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação” e que “para realizar este direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes deverão assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida”, é a Constituição que está sendo lida, pois essa norma foi incorporada ao nosso ordenamento como se fosse uma emenda constitucional.

O Governo usou como fundamentação de seu veto uma decisão do STF (o ARE 1007409), de conteúdo completamente diferente, em que o Supremo a apreciou a juridicidade de uma lei sobre os veículos abandonados pelos seus proprietários no pátio do DETRAN!

O simples fato de dois projetos de lei, em tese, serem de inciativa privativa do Executivo e terem aptidão para gerar despesa não autoriza que eles sejam considerados idênticos para fins de se utilizar um como precedente do outro, pois o próprio Supremo Tribunal Federal tem diversos outros julgados em que, dependendo da matéria que é tratada num projeto de lei, principalmente quando se trata de direitos humanos, as regras que proíbem a iniciativa parlamentar são flexibilizadas e até afastadas.

Podemos citar como exemplos os julgados no ARE 745745, RE 581352, ARE 903216 e RE 440028, em que o Supremo Tribunal Federal afirmou a prevalência dos direitos fundamentais sobre diversos outros valores constitucionais, colocando-os acima, inclusive, da alegada ausência de fonte de custeio e até da cláusula de separação dos poderes!

Ora, se o projeto de criação da PROAP tem como matéria os direitos humanos e fundamentais de crianças deficientes, é necessário pesquisar um pouco mais a jurisprudência da Corte Maior para encontrar um precedente adequado.

No caso em tela, a própria Constituição Federal fixou como parâmetro para a solução desses conflitos normativos a prioridade no atendimento aos direitos fundamentais das crianças, adolescentes e jovens,  no seu art. 227, que assim está redigido:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Para entender o significado da expressão “prioridade absoluta”, vale reproduzir o estudo realizado pelo Instituto Alana, no Projeto Prioridade Absoluta, que fez um brilhante resumo sobre o tema, explicando conceitos como o de “Condição peculiar de desenvolvimento e hipervulnerabilidade infantil” e de “princípio do melhor interesse da criança”, nos seguintes termos:

“Uma conquista da sociedade brasileira, a prioridade absoluta é um marco na mudança das lentes utilizadas pela legislação brasileira para enxergar a infância. Isso só ocorreu devido à mobilização da sociedade civil, que levou à assembleia constituinte de 1987 duas propostas de iniciativa popular – “Criança e Constituinte” e “Criança: Prioridade Nacional” – que deram origem ao texto do artigo 227 da Constituição Federal [1].

É a partir desse momento que se passou a olhar para a criança como pessoa em especial condição de desenvolvimento, digna de receber proteção integral e de ter garantido seu melhor interesse. O termo “absoluta”, presente somente no artigo 227 da Constituição, confere uma necessidade de aplicação invariável e incondicionada desta norma em todos os casos que envolvam crianças.”  

Dentre as consequências práticas dessa opção constitucional estão a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência de atendimento nos serviços públicos, a preferência na formulação e na execução das políticas sociais e a destinação privilegiada de recursos públicos.

Embora a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se incline, em outras matérias menos importantes, pela afirmação da iniciativa privativa do Poder Executivo, verifica-se o surgimento de uma nova mentalidade como nos precedentes citados, e o reconhecimento de valores muito mais elevados e que confirmam a constitucionalidade material e formal de projetos de iniciativa parlamentar voltados às crianças e deficientes, mesmo os que criam atribuições e despesas, por obediência a outros princípios e normas da própria Constituição Federal e que se aplicam, também, ao caso da PROAP.

Tanto tudo isso é verdade que, embora esse projeto tenha sido vetado, outro semelhante, mas bem menos abrangente, de autoria do Deputado Wilson Santos, foi sancionado pelo Governador. Portanto, não se trata de questão jurídica e muito menos de atender à população da melhor forma possível, mas, como sempre, apenas de gerar propaganda indireta para si e para seus aliados, utilizando-se da máquina pública.

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